Nos últimos anos, a judicialização na área da saúde tem se intensificado, especialmente quando se trata de demandas por serviços de home care. Em São Paulo, o número de ações judiciais relacionadas a esse tipo de atendimento domiciliar aumentou 64% no último ano, conforme levantamento recente. Embora o home care não seja um serviço de cobertura obrigatória segundo as normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a quantidade de processos contra as principais operadoras de planos de saúde tem crescido consideravelmente. Esse aumento reflete não apenas a necessidade crescente de cuidados domiciliares, mas também as complexidades e controvérsias que envolvem a interpretação das leis que regem o setor.
A Judicialização da Saúde e o Home Care
O aumento das ações judiciais em São Paulo está diretamente relacionado à crescente demanda por serviços de home care. Este tipo de atendimento, que permite ao paciente receber cuidados médicos em casa, muitas vezes é considerado uma alternativa mais humanizada e eficiente em relação à internação hospitalar prolongada. No entanto, a ANS não inclui o home care no rol de procedimentos de cobertura obrigatória, o que significa que as operadoras de planos de saúde não são legalmente obrigadas a oferecer este serviço, a menos que esteja expressamente previsto no contrato.
Essa falta de obrigatoriedade, entretanto, tem sido contestada nos tribunais. Entidades de defesa do consumidor, como o Procon-SP, argumentam que, existindo prescrição médica, as operadoras têm o dever de conceder o home care, independentemente de o serviço estar incluído na lista de coberturas da ANS. Essa interpretação mais ampla do que constitui a cobertura obrigatória tem levado muitos beneficiários a buscar seus direitos na Justiça, o que explica o aumento significativo das ações judiciais.
A Lei 14.454 e o Rol de Procedimentos da ANS
Um dos principais fatores que impulsionou o aumento das ações judiciais foi a aprovação da Lei 14.454 em setembro de 2022. Essa lei alterou a interpretação do rol de procedimentos da ANS, que passou a ser considerado exemplificativo, e não mais taxativo. Na prática, isso significa que os planos de saúde devem custear tratamentos indicados por médicos, mesmo que esses tratamentos não estejam incluídos no rol de cobertura obrigatória da ANS. Essa mudança gerou um aumento na insegurança jurídica para as operadoras, que passaram a enfrentar um número maior de demandas judiciais.
Em 2023, um ano após a aprovação da lei, as operadoras de planos de saúde enfrentaram cerca de 234,1 mil processos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Essa explosão de litígios chamou a atenção do Supremo Tribunal Federal (STF), que estuda maneiras de lidar com a crescente judicialização da saúde no Brasil. Enquanto novas soluções não são implementadas, as operadoras argumentam que a insegurança jurídica causada por decisões judiciais que obrigam a cobertura de tratamentos não previstos em contrato ameaça a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar.
O Home Care no Centro do Debate Jurídico
De acordo com um levantamento feito no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em 2023, foram registrados 451 processos relacionados ao tratamento domiciliar, também conhecido como home care. Esse número representa um aumento de 64% em comparação com o ano anterior, quando foram protocolados 275 processos. O aumento das demandas por home care superou o crescimento total de ações movidas contra as principais operadoras de planos de saúde, que foi de 36,5% no mesmo período.
O TJ-SP e outros tribunais estaduais têm emitido decisões que favorecem os beneficiários, obrigando as operadoras a fornecer o serviço de home care quando há prescrição médica, mesmo que o contrato do plano de saúde exclua essa cobertura. Por exemplo, a súmula 90 do TJ-SP estabelece que, havendo indicação médica expressa para o uso de home care, é abusiva a cláusula contratual que exclui essa cobertura. No Rio de Janeiro, a súmula 209 do TJ-RJ vai além, prevendo danos morais em caso de recusa indevida de internação ou serviços hospitalares, incluindo o home care.
A Realidade dos Pacientes: Histórias de Luta por Direitos
As histórias de pacientes que recorreram à Justiça para garantir o home care ilustram as dificuldades enfrentadas pelas famílias em situações de saúde complexas. A vendedora Cristiane Ferraz da Mota Melo, por exemplo, precisou entrar na Justiça para garantir o home care para seu filho Lorenzo, de 13 anos, que sofre de uma doença degenerativa rara. Segundo Cristiane, o plano de saúde ameaçou cancelar o serviço e recolher os aparelhos que mantêm seu filho vivo. Apenas após uma liminar judicial, Cristiane conseguiu manter o home care para seu filho.
Outro caso é o de Tamam Ibrahim Aoun, uma idosa de 100 anos cuja família precisou arcar com os custos do home care durante três anos após sucessivas recusas do plano de saúde em fornecer o serviço. A família só conseguiu a cobertura após uma decisão judicial, mas ainda assim enfrentou dificuldades, como a espera de 15 dias no hospital após a alta para que o plano cumprisse a sentença.
O Envelhecimento Populacional e a Demanda por Home Care
Um dos fatores que contribui para o aumento da demanda por home care é o envelhecimento acelerado da população brasileira. Condições comuns em idosos, como pneumonia, fraturas e doenças neurodegenerativas, muitas vezes exigem cuidados domiciliares após a alta hospitalar. Com o aumento da expectativa de vida, é esperado que a necessidade de home care continue crescendo, o que pode levar a um aumento ainda maior das ações judiciais contra planos de saúde.
O aumento de 64% nas ações judiciais por home care em São Paulo é um reflexo das complexidades envolvidas na cobertura de saúde no Brasil. A judicialização da saúde, impulsionada por mudanças legislativas e interpretações divergentes das normas do setor, coloca em destaque as dificuldades enfrentadas tanto pelos pacientes quanto pelas operadoras de planos de saúde. Enquanto o debate sobre o rol de procedimentos da ANS e a obrigatoriedade do home care continua, a tendência é que as disputas jurídicas nesse campo se intensifiquem, exigindo soluções que equilibrem os direitos dos beneficiários com a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar.